Além de ser considerado um dos atletas mais importantes do século 20, o ciclista italiano Gino Bartali também foi um herói da Segunda Guerra Mundial.
Com a Itália em guerra e aliada aos nazistas, Gino abrigou uma família judia e transportou, no quadro da bicicleta, identidades falsas que salvaram a vida de centenas de perseguidos.
Por sua capacidade de superação, ficou conhecido como "O Leão da Toscana", alcunha que dá título à biografia. Escrito por Aili McConnon e Andres McConnon, o livro tem lançamento previsto para o dia 19 deste mês e está em pré-venda na Livraria da Folha.
Abaixo, leia um trecho.
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Prólogo
No íngreme sopé do Vars, em uma encosta batida pelos ventos no alto dos Alpes franceses, Gino Bartali perdeu a paciência. Atrás dele, dois ciclistas o seguiam tão próximos à sua roda traseira, que ele era forçado a funcionar como escudo contra o vento gelado e a arrastá-los para a frente. Recusavam-se a ocupar a dianteira do grupo, e isso o irritava muito. À frente do trio, uma figura solitária ia ficando cada vez menor, pedalando na estrada enlameada, uma mancha que ziguezagueava escarpa estéril acima, contornando pináculos íngremes, abetos estiolados e montes de pedregulhos até sumir no frio nevoeiro da montanha. Gino tinha de tomar alguma providência agora, se quisesse ter qualquer possibilidade de alcançar o líder que desaparecia no nevoeiro adiante.
Era 15 de julho de 1948, e L'Étape Reine - a Etapa Rainha -, o dia mais importante do Tour de France. Uma rápida passada de mão pelos óculos de proteção cobertos de lama revelou uma cena desanimadora até mesmo para quem havia vencido o Tour dez anos antes exatamente naquele terreno. Em 1938 Gino flutuara acima dos cumes nevados dos Alpes imperiais, rumo ao intenso azul daqueles céus. Agora mal distinguia o ponto em que a montanha encontrava o firmamento, enquanto grossas nuvens rolavam à sua volta e a lama sob as rodas ia ficando tão espessa quanto cola.
O ambiente desolado ecoava a dor que gritava dentro de seu corpo.
Depois de pedalar mais de 2.700 quilômetros na topografia mais desafiadora que o ciclismo tinha a oferecer, sentia as coxas pesadas como bronze, garganta e pulmões queimavam. Sem conseguir enxergar muito além de sua roda dianteira, ele dependia dos demais sentidos para detalhar o cenário. Percebia o aclive sob as rodas à medida que a estrada ficava mais íngreme. Sentia o gosto da chuva gelada transformando-se em flocos de neve quando engolia o ar rarefeito da montanha. E tudo o que conseguia ouvir, além de seu próprio corpo inclinado sobre a bicicleta, era um silêncio lúgubre e desamparado.
Gino dirigiu todos os seus músculos e todos os fragmentos de concentração mental para silenciar os críticos com essa próxima escalada.
"Il Vecchio", era assim que o chamavam na imprensa, "o Velho", aos 33 anos de idade! Estava cansado de ser descartado como um embaraçoso ex-vencedor, insolente apesar de sua humilhante desvantagem de 21 minutos em relação ao líder do Tour. Havia até mesmo se excedido com os jornalistas italianos, e gritado por duvidarem dele. Mas não importava - os repórteres já o tinham apelidado de "Ginettaccio", "Gino, o Terrível", e os jornais iriam simplesmente creditar isso como mais uma de suas explosões. O que a imprensa não sabia, no entanto, era que Gino Bartali tinha um segredo. Havia muito mais coisas reprimidas dentro dele, além da frustração por estar tão atrás; e ele não tinha ficado parado durante a guerra. Diferentemente de alguns dos competidores contra os quais agora corria, seus momentos mais árduos não tinham sido nas íngremes trilhas do Tour de France, mas no período mais sinistro da ocupação nazista da Itália, arriscando a própria vida por estranhos.
As memórias daquela época caótica ainda estavam frescas e era por isso que o surpreendente telefonema da noite anterior o perturbara. Os relatos sobre maciços atos de protesto e conflitos violentos nas ruas das cidades italianas enchiam a cabeça de Gino, e sua respiração acelerava quando pensava na mulher e nos filhos pequenos. Ouvira, estupefato, o primeiro-ministro da Itália explicar, do outro lado da linha, como uma vitória no Tour seria importante para sua terra natal.
Pedalando na direção da cidade de Briançon, no topo da montanha, o instinto fez Gino virar a cabeça. Olhando para trás sobre o ombro, viu que os adversários atrás dele estavam nas últimas, o rosto pálido e contorcido, e o corpo encharcado oscilando precariamente sobre a bicicleta. Já lhes dera guarida suficiente. Num ímpeto de força bruta, ergueu-se sobre o selim e disparou para a frente. Logo voltou a avistar o ciclista francês que liderava.
Sentindo o inimigo, o francês lançou um alarmado olhar para trás. Sua preocupação fazia sentido; Gino era uma figura intimidadora. Com os olhos invisíveis sob os óculos enlameados, parecia quase sobrenaturalmente fundido em sua bicicleta - o esguio corpo de corredor vigorosamente flexionado, guiando a bicicleta trilha tortuosa acima.
Ao se aproximar do rival, Gino voltou a sentar-se, deixando o ciclista francês recuperar um pouco de terreno e de esperança. Tão logo, porém, ele retomou o ritmo, Gino ergueu-se para novo ataque. Vezes e vezes repetiram esse jogo exaustivo, ao longo de todo o caminho até o pico. Quando o francês alcançou o topo do desfiladeiro da montanha, estava completamente exausto. Gino, pelo contrário, tremia de excitação à medida que se aproximava do pico, menos de um minuto atrás. "Eu e a montanha somos um", pensou ele enquanto disparava sobre o topo.
Quando encarou a aflitiva descida, os lábios de Gino formaram um sorriso confiante no rosto salpicado de sujeira. Chegara a hora de o gato pegar o rato. Chegara a hora de mostrar ao mundo que a guerra não o havia derrotado. E seu retorno ao Tour, ele começava a entender, significava mais do que uma corrida de bicicleta na França.
Era a etapa final de uma jornada para um homem e seu país − uma jornada que começara havia mais de vinte anos numa poeirenta estradinha na Toscana.
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